“Chegar a um ponto em que você trabalha em grupo, com um trabalho de oito horas, com criatividade, com um projeto que abre possibilidades para pessoas com deficiência… me parece maravilhoso e acho que cheguei até aqui.”
Foi assim que se apresentou Jaume Belló, um homem que afirma ter nascido “teatralmente” e cuja trajetória é em parte culpa da Organização da Juventude Espanhola (OJE). A família o encaminhou para os acampamentos e no programa de atividades propostas ele se inscreveu para teatro, a proposta do gestor consistia na representação do Gato de Botas. Na distribuição de papéis, Belló ficou com o personagem cavalo, mas apesar da pouca relevância da interpretação, foi agraciado com o diploma “Proel el teatro”.
A circunstância iniciática em alguns campos do OJE, o fato de receber um diploma que reconhecia que você tinha feito teatro, gerou asas no meu subconsciente infantil para pensar que eu tinha que me dedicar a isso, enfatizou Belló
Um burro inquieto que se dedica a revitalizar a actividade cultural de Torrelameu com grupos de jovens, organizando festivais de playback, pequenas peças, danças, cantos… Todos os verões organizava actividades com os jovens da aldeia.
A cota familiar obrigou-o a ingressar na faculdade de Direito, mas apesar de ter condições para começar como advogado, não conseguiu concluir os estudos, devido ao grau de estresse que isso lhe causava.
P – Você é um homem de teatro, mas quando percebe que o que você faz vai além da atuação?
R – Fiz parte de um grupo de fãs e recebemos a proposta de utilizar o teatro como ferramenta de alfabetização no bairro Mariola, em Lleida. Mas, mesmo assim, eu não fazia ideia que era teatro social ou intervenção, para mim era teatro e isso bastava, não tinha noção que o substantivo teatro vinha acompanhado da coisa social.
Este é um dos círculos de vida que me acompanharam ao longo da minha vida. A artista Rosa Solsona, que trabalhava no projeto de alfabetização de Mariola, que na época dependia da Assistência Social, precisava de alguém para dar aulas de teatro. Solsona trabalhava com artes plásticas e precisava de alguém do movimento e das artes cênicas para participar, e não hesitei em me oferecer. Acontece que uma das espirais estava se fechando, já que Solsona havia sido professora de artes plásticas aos 12 anos; meus pais me levaram a Lleida para fazer essa atividade, porque o professor de matemática disse que eu era um idiota inquieto e precisava fazer alguma atividade artística. E neste processo descobriu-se que a professora de matemática era Teresa Ribes e nessa altura responsável pela Segurança Social. Para mim isso foi um sinal de que na minha vida as espirais vão se fechar para que o destino me leve nessa linha.
P – Esse foi o passo para sua profissionalização?
R – Poderíamos dizer que sim, outros projetos surgiram da atividade de Mariola até que cheguei ao Teatro Municipal para dar aulas de performance e arte contemporânea, projeto promovido pela Fundação La Caixa. Acho que as circunstâncias me levaram a poder participar nestes projetos porque sempre disse sim a tudo.
Na Sala de Teatro dei aulas externas durante cerca de vinte anos, até que foi criado o ciclo regular de formação e em 2015 foi criada a aula social. Era uma área que queria programar atividades para grupos vulneráveis e para as pessoas que trabalham nesses grupos.
P – Poderíamos dizer que neste meio social você foi de alguma forma um pioneiro?
R – Nem toda a minha actividade foi dirigida ao teatro social, trabalhei em teatro convencional, dirigi a companhia Xip-Xap durante treze anos, fiz teatro em inglês em Espanha. Mas na sala de aula noto algo muito interessante: pessoas com habilidades limitadas sempre foram bem-vindas. Eu vejo isso, mas nunca foi valorizado o suficiente, na verdade porque não sabiam fazer, essas pessoas faziam teatro como todo mundo, o que significa também que a Sala de Aula tem sido muito igualitária e tem funcionado desde a diversidade
Com esta base, comecei uma busca pelo que estava sendo feito em outros países, que desde os anos sessenta ensinavam uma forma diferente de trabalhar, acolhendo a todos, sem gerar discriminação por falta de talento, trabalhando com talentos de uma forma diferente, evitando, sobretudo no âmbito juvenil, devem ser evitados os castings que em grupos que não sabem se devem dedicar-se ao teatro… Com isso continuei a trabalhar com os grupos em que estive, pensando que todos podem fazer teatro, portanto, minha responsabilidade como professor, eu tenho que ensiná-los. Procurei uma maneira de aprenderem com isso ou de despertarem suas habilidades.
Olha, para muita gente “essas são as coisas que o Belló faz”, uma definição do que funciona, uma revitalização bacana, em que todos tenham espaço, que dizem ser terapêutico, dá voz a todos, e não segrega como a profissão … Porque o teatro é muito segregador, ou você é bom ou não. Não sei bem se é uma metodologia própria, tenho utilizado materiais de um lugar e de outro para conseguir realizar sessões ao vivo abertas à criatividade de cada pessoa.
P- Qual é o objetivo final desta atividade?
A – A primeira definição que encontrei para essas atividades foi Cursos de Criatividade para Crescimento Pessoal (CCCP), porque na verdade não parto de um trabalho específico, há muito tempo não dou um texto para aprender, trabalho a partir da criatividade . Fazemos um improviso e cada um decide o que quer fazer, e coloca-se em palco, ponto de partida que nos permite dar corpo a uma história. Para mim a história de uma pessoa desse grupo é muito mais interessante do que criar uma história que ninguém viveu.
Trata-se de capacitar as pessoas pensando que são úteis para contar histórias, talvez não para se dedicarem profissionalmente nos canais onde outras pessoas se dedicam, mas para subirem ao palco e contarem histórias, o que nestes coletivos lhes permite melhorar a sua autoestima e perceber que podemos fazer outras coisas.
P – Até que ponto o teatro pode ser considerado terapêutico?
R – Não sou terapeuta, sou artista, mas tenho consciência de que a arte é muito terapêutica para as pessoas e a criatividade ainda mais, é aquela criatividade infantil que nunca deve ser perdida. A palhaça Virginia Imaz disse que a “educação” a que fomos submetidos é a culpada por isso. Uma palavra que utilizo com frequência, porque considero que essa criatividade que perdemos em algum momento, ou por alguma circunstância, por consideração ou influência do nosso meio, deve ser liberada.
P- Quão receptivo é o setor social a estas propostas?
R – Acho que estamos evoluindo para um novo sistema de trabalho nesses coletivos, menos assistencial e mais social. Nota-se que, uma vez garantidas as suas necessidades primárias de habitação e alimentação, surgem necessidades de autorrealização; devem consumir lazer ou cultura e isso está sendo feito muito bem. A cena vai além, eles devem ser capazes de fazer cultura e devem ser capazes de oferecer cultura, mas assim como foram liberadas as barreiras arquitetônicas para que as pessoas com deficiência fossem espectadores, não houve o pensamento de que eles fossem artistas. Muitos equipamentos não possuem acessibilidade física aos palcos, não estamos falando de outras acessibilidades como as sensoriais, ou seja, essa falta é perceptível.
É claro que o sector social está a passar por uma transformação, as tutelas foram abolidas e de repente as pessoas que estão institucionalizadas há tantos anos entendem que devem sair para a comunidade, mas esta nova situação é difícil para elas. Durante muito tempo foram cuidados e protegidos, mas agora a comunidade é completamente nova para eles e causa uma situação complicada para eles, mas também para a comunidade que vê como as pessoas com deficiência são integradas na sua vida quotidiana.
Está indo bem, mas de uma forma muito lenta. Penso que temos de conseguir aceitar todos, mesmo que os critérios possam ser muito contraditórios. Já ouvi comentários em um show como “como eles são legais fazendo isso, coitados”, e também outros como “essa mensagem dos atores é muito poderosa”.
Esse cenário em que todos são acolhidos e todos têm o seu direito, independente de ser de uma forma ou de outra, se desta ou de outra, esse deveria ser o caminho.
P – Essa sua criatividade leva você a escrever um livro.
R – Na verdade este livro foi uma terapia pessoal, pois diferentes situações pessoais, toda a crise da sala de aula e os casos de abuso levaram a uma depressão brutal, porque não sabia como gerir a situação. O teatro já não me satisfazia em nada e procurei apoio na poesia, mas como sempre uma espiral voltou a fechar-se. Encontrei-me com um amigo do ensino médio que também estava passando por um momento difícil, e desse encontro surgiram poemas antigos que havíamos trocado.
Por outro lado, num curso que fiz no Irredutível, as pessoas que participaram me disseram que era muito terapêutico e que você deveria escrever um livro sobre essas técnicas que você usa. Acho que talvez não escrevesse um livro, “mas poderia me sair bem”.
A espiral voltava a fechar-se num novo patamar, quando conheci o ilustrador Abel Carrasco. Numa apresentação na Pobla de Segur eles compartilharam um bate-papo e uma cerveja explicando nossas coisas e descobrindo que havíamos suportado nossas noites sem dormir por causa da depressão e da esquizofrenia dele, eu escrevendo e Abel desenhando. Pedi a ele uma ilustração para a capa, mas no final ele se atreveu a colocar fotos em todos os textos do livro.
Aqui foi forjado “Omnia sunt insomnia”. Posso dizer que é uma coleção de textos talvez dramáticos que editei por mim mesmo. Como acontece com qualquer publicação, a distribuição é a mais complicada, por isso decidi fazê-lo eu próprio em espaços únicos e rodeado de bons amigos e de pessoas que gostam de poesia. Acho que cada apresentação tem sido uma aventura, uma performance artística que vai além do habitual e do esperado, encontros que dispensaram rituais estilísticos e linguísticos e se limitaram a falar de como é bela a poesia e de como é bonito dar poesia.